quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

O específico do Videogame



O que é que faz os videogames serem o que eles são? E o que exatamente é isso?

O cinema é uma forma mista, certo? Em essência, sendo purista e levemente absurdo pode-se dizer que cinema são imagens em movimento. Não deixa de ser verdade, são milhares de quadros (que são, na prática, fotos) se alternando e criando a ilusão de movimento. Mas o que vemos quando assistimos a um filme não é só esse purismo das imagens em movimento. Nossos filmes têm música, atuação, efeitos sonoros e visuais etc. Onde fica então o que torna o Cinema uma “arte” de fato? Por que é que o circuito interno do banco não é cinema? Uma possível resposta (e uma que eu apoio) é que o cinema se faz como arte original pela edição. É a edição das imagens gerando significado e simbolismo (nascida lá no começo do século XX com Serguei Einsenstein) que faz o cinema se consolidar como uma nova expressão artística. Com a visão de um cineasta para um trabalho de edição até mesmo o circuito interno do banco pode ser transformado em um filme.
E os quadrinhos? São texto + imagem, certo? Então um pôster é quadrinhos? O Rótulo da minha Fanta Uva é quadrinhos? A questão é a mesma, e a resposta é obviamente “não”. Lendo Scott McCloud e Will Eisner é possível ver que a arte dos quadrinhos repousa também na edição, de forma semelhante ao cinema e, de forma original, na transição entre os quadros. Na sarjeta (o espaço vago entre quadrinhos) acontece a mágica que dá movimento e vida a cada painel e o trabalho do(s) quadrinhista(s) é manipular imagem, texto e transição para criar significado.
Onde então repousa o específico dos games? Como videogames criam significado e expressão artística de maneira própria? O que é a forma dos games? Gritar “interatividade!!” é muito fácil e vago (o elevador do meu prédio é interativo), portanto vamos tentar complexificar a coisa um pouco.
Os exemplos anteriores do cinema e dos quadrinhos foram um jeito de cozinhar o argumento de que os videogames são uma forma mista. E bota mista nisso! Cinema, música, pintura, literatura (os livros de Elder Scrolls e a enciclopéda de Mass effect são ótimos exemplos), quadrinhos etc. Os games emprestam características de tudo quanto é arte para se criarem. Então interatividade é sim uma resposta razoável, uma vez que essas outras formas não a apresentam (blábláblá livros-jogo, ok! Mas acho mais fácil considerá-los um jogo literário do que literatura interativa). No entanto, o que eu quero propor aqui é que há a especificidade da edição da interatividade. Não é qualquer coisa que você faz que pode ser chamada de Call of Duty,  mas sim um certo conjunto de atividades compilado de uma certa maneira com uma certa apresentação. Nenhum game é uma simulação absoluta de tudo (o que aliás é uma complicação filosófica só, como pirou Jorge Luis Borges...) mas sim um recorte de experiências que transmitem a visão dos autores.
O que os jogos em geral criam, para mim, são instâncias – uma maneira que eu arranjei de dizer “espaço” sem me referir a nada físico... A maneira mais eficiente de enfiar a bola no gol é pegando ela e saindo correndo, mas dentro do jogo de futebol há restrições de movimento e conduta baseadas nas regras do jogo. Esse sistema de conduta e objetivos é o que gera o jogo de futebol. A questão para mim é que esse sistema gera um espaço temporário em que o mundo funciona de um certo modo e que esse processo gera significado.
Uma amiga certa vez foi a uma oficina de teatro (se não me falha a memória...) de uma galera de esquerda e o pessoal propôs um exercício. Tratava-se da velhíssima dança da cadeira: a música para, todo mundo senta e quem ficar de pé lascou-se. Jogaram até terminar. Logo em seguida modificaram o esquema: parando a música todos tinham que sentar ou todos perdiam e a cada rodada tirava-se uma cadeira. No primeiro caso o jogo exclui para gerar um único vencedor; no segundo, o grupo como um todo deve se esforçar para nunca excluir. O que era competição se torna cooperação, o que era hierarquia se torna um grupo unido por um objetivo. Nenhuma palavra ou imagem precisa ser usada para que essa mensagem chegue aos jogadores, a interação com um sistema gerou esse significado.
Os videogames funcionam da mesma maneira, mas com o adicional dos elementos de outras tantas artes, como cinema, música, pintura, etc. Jogar Space Invaders é matar aliens, mas o mesmo jogo pode ser reproduzido fazendo a nave do jogador e as dos inimigos serem qualquer outra coisa. Se o game for recriado com uma nave claramente norte-americana atirando contra vários invasores mexicanos, por exemplo, qualquer um vai associar o conjunto ao antagonismo dos EUA contra os imigrantes. O sistema de Space Invaders define, através de ações do jogador, o antagonismo entre as duas forças. Os de cima são muitos e querem destruir o de baixo, que deve destruir para se manter vivo. Nesse exemplo hipotético, a casca de imagens aplica o sistema a um contexto simbólico, criando um significado novo.
Acho que é possível então chegar a esses dois elementos básicos dos games como forma expressiva: os sistemas que definem a ação do jogador dentro da instância do jogo – e que chamo de experiência do game; e a “casca” feita de outras artes, que envolve e molda o significado desses sistemas – que optei por chamar de apresentação. Da dialética entre esses dois elementos surge o que chamamos de jogo.
Há, no entanto, duas observações a serem feitas. Primeiro vejamos Tetris. Trata-se de um dos games mais influentes e universais da história, tendo se alastrado feito um vírus por todo tipo de plataforma e atingido todo tipo de gente. No entanto ele não tem cutscenes, nem gráficos elaborados, nem músicas geniais. Um dos primeiros protótipos que Alexei Pajitnov criou de Tetris usava colchetes para criar as formas usadas no game. Tetris poderia até ter uma apresentação aplicada em si - poderia ter as peças transformadas em placa bacteriana e a moldura em dentes, sei lá!! - mas a verdade é que ele não necessita de apresentação nenhuma para funcionar nem para passar significado através da experiência de jogo. Disso podemos observar que, no limite, jogos são sistemas: não é necessário atuar nem se vestir de coisa alguma para brincar de pega-pega, mas é possível dar novo significado à brincadeira se coisas assim forem acrescentadas. É então da interação entre a experiência criada por um jogo e a apresentação associada a essa experiência que se constitui a forma dos games. Embora seja possível criar sistemas-jogo sem apresentação quase que nenhuma, indo ao extremo da abstração por símbolos matemáticos ou linhas ultra-simplificadas, de qualquer maneira estamos gerando essa dialética – uma vez que a opção por extirpar a apresentação é uma escolha estética mesmo assim.

Primeira versão de Tetris no Electronika 60, computador soviético


Em segundo lugar, é importante sempre lembrarmos que, no limite, videogames são jogos, nascem do mesmo lugar na nossa cabeça e funcionam do mesmo jeito que Xadrez, Pega-pega e Futebol. Game designers praticam seu raciocínio criando jogos de tabuleiro e de cartas porque os princípios são os mesmos. O Jogo, com J maiúsculo, enquanto elemento formador da cultura, é de onde nascem os jogos (em sentido restrito, como Damas ou Amarelinha) como nós os conhecemos (esse termo e essa relação são descritos maravilhosamente pelo historiador Johann Huizinga em Homo Ludens). Os videogames são um novo tipo disso e ganham especificidades devido à sua natureza eletrônica. O computador possibilita todo tipo de simulação – é possível simular com modelos 3D qualquer tabuleiro imaginável e com a programação adequada recriar quaisquer sistemas. É exatamente isso que os videogames fazem, só que como forma original eles vão além de seus pais analógicos através das suas possibilidades digitais. É irreal criar um tabuleiro de Zombicide (se não jogou, vá jogar!) com dezenas de quilômetros quadrados, mas é perfeitamente razoável ter um mundo jogo dessa envergadura em GTA e Skyrim. Não é razoável imaginar lançar centenas de dados de dano para um ataque em um RPG de mesa, mas um computador faz essa conta em milésimos de segundo. As possibilidades eletrônicas de simulação expandem de maneira quantitativa as características dos games tradicionais, ao limite que a mudança se torna qualitativa.
Os limites dessa dialética interna dos games estão, e sempre estarão, sendo constantemente testados, assim como em qualquer outra forma expressiva. Tivemos o renascentismo, o impressionismo, o abstracionismo nas artes plásticas. Nos games também já tivemos certos movimentos que vieram e enfraqueceram: como a era dos games estilo arcade, e a força imensa que os JRPGs tiveram na geração 16 bits e que não tem mais. A nossa arte tem buscado se consolidar cada vez mais e certos elementos já vem se mostrando fortes o suficiente para durar, como as narrativas de cunho “cinematográfico”, a jogabilidade de tiro FPS, os mundos abertos etc. Há uma série de ênfases que surgem com a indústria e com a inovação técnica e estética criada pelos desenvolvedores, sejam de vanguarda, sejam conservadores.
                Essa é uma opinião, entretanto é uma opinião construída com muita leitura e muita experiência pensando em arte, em games e em ciências humanas, então espero que não seja refutada automaticamente. O que quis aqui foi tentar acrescentar alguma coisa nos debates tradicionais como “games são arte?” ou “narratologia versus ludologia” (esse é bem forte no meio acadêmico de estudo de jogos... qualquer hora eu apresento os dois lados por aqui). Sendo otimista espero que alguém puxe um debate – mesmo que inflamado. Nada como ser pressionado para ver o quão bem estamos para nos defender. Também serve para introduzir um pouco do meu jeito de enxergar e analisar games, que ainda pretendo exercitar bastante por aqui. Espero ter acrescentado alguma coisa para suas reflexões.

Perdão pelo post longo. Aqui está o Darth Vader brincando com gatinhos pra me redimir:




2 comentários:

  1. Fala Daniel!
    Seu texto (muito bem escrito, por sinal) me trouxe muitas indagações, pensamentos que tinha durante a faculdade. É engraçado como a sociedade vê necessidade em organizar as coisas e nomeá-las: "isto é arte, mas aquilo não!". O que antes definíamos como filmes, hoje está evoluído e com diversas novas estruturas -- como você bem definiu.
    Em minha concepção, se filmes são arte, todas as formas audiovisuais também o são, e isso inclui os quadrinhos. Lembremo-nos que a edição das HQs é feita individualmente e mentalmente, fazendo com que o próprio leitor tenha uma história única. Os jogos fazem o mesmo, apenas limitam o jogador em um espaço-tempo próprio e com todos os elementos disponíveis.
    Quero, apenas, bater em uma tecla que é discussão muito atual entre os jornalistas de games: é mesmo necessário, na atualidade, definir o que é ou não jogo? Não basta que o conteúdo traga diversão e interatividade? Cada vez mais nos importamos menos com isso e ligamos a televisão para diversas formas de entretenimento. Logo, tudo poderá convergir e se tornar um único produto. É o futuro!
    Grande abraço!

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  2. Tenho preguiça da discussão de "Games são arte?" porque parto de uma definição muito ampla sobre arte. Para mim, "arte" é uma forma de comunicação mediada. Um filme como Babel, por exemplo, fala sobre falta de comunicação, alienação e distância nas relações humanas. Esses temas poderiam ser tratados num artigo acadêmico ou jornalístico sobre comportamento ou psicologia, mas há a opção consciente de "dizer A para dizer B". Constrói-se a reflexão por outros meios, mediados que para mim já constituem arte.
    Games são obviamente incluídos nessa conta. A definição que normalmente é debatida nessas brigas é, em geral, elitista e parte do pressuposto de que arte é arte erudita. Mesmo filmes mais mainstream às vezes são colocados fora da definição de arte nesses casos.
    Sobre a necessidade da definição. Do ponto de vista da produção e do consumo desses objetos, não há necessidade alguma. No entanto o que eu acho que trago de útil com esses textos é um ponto de vista de análise cultural e social, partindo dos games como objetos culturais que servem como documentos do contexto histórico no qual são produzidos. A fruição desses objetos culturais se torna relevante, deste ponto de vista, pois denota quais são mais ou menos influentes - o que também revela sobre o contexto histórico de produção.
    Sobre a convergência das mídias: por enquanto tenho a impressão de que ela se dá pela amplitude dos referenciais, mas não pela fusão das formas. "Batman" deixou de ser uma revista em quadrinhos para ser algo anterior ao meio de expressão, um ícone que se manifesta em diferentes formas como filme, jogo, brinquedos e quadrinhos.
    Enfim. Não me entenda mal... estou trabalhando a análise dos games como expressão cultural porque acho que não acrescento muito como um blogueiro anônimo só dizendo o quanto eu adoro games hehe. Talvez com um assunto de nicho eu seja mais produtivo.

    Abraço!! Muito obrigado pela visita! Da próxima vez fica para um cafezinho!

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